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25.09.24

"- No próprio ano de setenta e um, assim que Allende assumiu a presidência, a extrema-esquerda começou a incentivar as ocupações dos locais de trabalho onde havia problemas que, vendo bem, não passavam de sarilhos que podiam ser solucionados de uma forma simples, legal, mas sob a palavra de ordem leninista «quanto pior, melhor», ocupavam-se fábricas que não tinham a mais pequena importância. E claro, como o governo popular não podia reprimir, nomearam-se mediadores e para isso procurou-se entre a militância os camaradas que percebiam realmente a natureza e as limitações do governo do povo. Era preciso pôr a trabalhar rapidamente todas essas fábricas e pequenas indústrias ocupadas, os mediadores tinham de ser bastante dinâmicos e criativos. Ser criativo era a palavra de ordem. (...) O caso é que um dia me nomearam mediador num aviário de Puente Alto, sabes, a sul de Santiago. Era uma série de barracões de rede metálica com umas incubadoras que podiam chocar dois mil frangos por semana, uns bichos feios, brancos, quase albinos, que passados sessenta dias estavam prontos para o sacrifício. Além disso, o aviário tinha duas mil galinhas poedeiras o que significava uma produção de sessenta mil ovos por mês. O negócio funcionava sem problemas, no aviário trabalhavam uns vinte tipos que percebiam do seu trabalho e os canais de distribuição também não causavam contratempos, de modo que coloquei o meu saco-cama, os meus livros e a mochila naquele que tinha sido o gabinete do administrador e comecei a familiarizar-me com os frangos e com as galinhas. Nos dois primeiros meses correu tudo bem, mas no terceiro, outros camaradas de extrema-esquerda decidiram ocupar a fábrica de rações e deixamos de ter alimento para os bichos. Tanto os frangos como as galinhas resistiram dois dias sem grandes demonstrações de desespero, mas ao terceiro os frangos começaram a picar-se uns aos outros, as galinhas deixaram de pôr e o cacarejo de fome partia-nos a alma. A palavra de ordem era sermos criativos, de modo que no quinta dia fui até à propriedade vizinha, uma fábrica de desidratação de frutas também ocupada, que tinha uns vinte hectares de pomar e muita erva, e o mediador autorizou-me a levar os meus frangos e galinhas para que pastassem. Os operários dos aviário fizeram de pastores e era um verdadeiro espetáculo ver aqueles dez mil frangos e duas mil galinhas andando aos saltinhos por um caminho de terra. O campo é pródigo em bichinhos pequenos, caracóis gordos, minhocas sumarentas, grilos estaladiços mas aqueles frangos e galinhas nunca tinham visto um verme, ignoravam-nos, receavam-nos, fugiam deles e para o pasto nem olhavam. Oh, se foi um triste regresso ao aviário! E o que veio depois foi ainda pior, porque o exercício lhes tinha aumentado a fome e os malditos frangos começaram a praticar o canibalismo. 

« Ao décimo dia estavam vivos metade dos frangos, as galinhas não punham ovos mas resistiam, e embora agora me pareça incrível, uma, só uma galinha pôs todos os dias o seu ovo da praxe. Eu apontava no relatório de produção: ovos - 1.»

- Era uma galinha com consciência de classe - assegurou Arancibia.

- Uma heroína do trabalho socialista. Ao décimo primeiro dia, hesitando entre o  suicídio e o assassinato em massa, decidimos pelo segundo; ser criativo era a palavra de ordem, de modo que reuni os homens mais fortes do aviário, armamo-nos com umas espingardas de caça e saímos em dois camiões rumo à fábrica de rações.

(...) Esses tipos que tinham ocupado a fábrica de rações também eram camaradas e não se resolvem a tiros as contradições no seio do povo - comentou Arancibia. (...) Chegámos  à fábrica, a primeira troca de impressões não foi muito fraterna e quando se nos acabou o inventário de insultos estávamos empatados. Eles armados de espingardas, uma ou outra pistola, e nenhum desejo de largar uns sacos de ração. Nós, com os nossos ferros e uma vontade louca de assaltar a despensa. Finalmente chegámos a acordo: eles deixavam-nos carregar os camiões e nós mandávamos frangos para manter a panela comum. (...) Carregámos os camiões a toda a pressa, regressámos ao aviário, enchemos os comedouros generosamente e fui dormir. Não dormi muito porque, poucas horas depois, alguns camaradas foram acordar-me dizendo que as galinhas e os frangos faziam um bacanal nas capoeiras. Pondo as coisas nessa linguagem que tanto te agrada, os bichos estavam entregues ao mais burguês dos liberalismos e por nossa culpa. Com a pressa, em vez de carregarmos os camiões com ração, fizemo-lo com sacos de um complexo vitamínico que devia ser administrado na proporção de um punhado por cada duas sacas de alimento. Os frangos estavam frenéticos e as galinhas loucas, perdendo as penas às mãos-cheias. Ao amanhecer, tínhamos sete mil pássaros em pêlo e mortos de frio. 

- Nada disso importa se temos o calor das grandes proletárias - precisou Arancibia.

- Uma merda. Não tivemos outro remédio senão recorrer ao sindicato da fábrica de arame de cobre, aqueles tipos eram os mais sensatos do país. Lembraste do velho Yañez? Pôs-nos em contacto com o mediador de uma fábrica de aquecedores e, assim, rodeamos os galinheiros de aquecedores a gás. Nunca foi tão caro produzir um ovo ou ver crescer um frango. Odeio-os com toda a minha alma - concluiu Salinas, esvaziando o copo de uma só vez."

 

Luís Sepúlveda, "A sombra do que fomos"

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publicado às 20:47


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